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O poder do fuso

Demorei para voltar aqui pois estava entretida com uma atividade que jamais, em 12 ou + anos de tecelagem, me despertou interesse: fiação.


Sempre achei que fiar fosse sofisticado/demorado demais para mim. Algo assim meio quase que desnecessário, dada a variedade de fios existentes no mercado e a facilidade com que é possivel, com um clique, comprar novelos e novelos sem sair de casa. Quando fazia parte de grupos no Facebook sobre tecelagem, em especial grupos internacionais, eram comuns as conversas sobre "handspun yarn" ( fios torcidos à mão (fiados)), e eu sempre pensava: "bem, parece bacana para eles, mas para mim...". Há uns 10 anos atrás, uma amiga americana, Kali, me presenteou com um fuso Schacht (marca americana consagrada em tecelagem), um video ensinando como usá-lo, e fibras cardadas (penteadas e desembaraçadas), naturais, tiradas diretamente da tosa das lhamas que ela criava na época. Achei o presente tão lindo e especial, mas daí a fiar... bem, talvez não preciso dizer que o fuso, o video e as fibras ficaram muito bem guardados por anos. Até que, há algumas semanas atrás, surgiu-me uma idéia, e então o fuso, perfeitamente protegido em meu armário, veio me mostrar um outro mundo: aquele onde criamos nossos próprios fios, e nos divertimos durante o processo. Mas vamos ao início.



Fuso Schacht. Fonte: Mielke's Fiber Arts


Há algum tempo atrás, olhei um saco de estopa (fibras de algodão que servem para limpeza), e vi ali uma oportunidade de tecer usando o material, para obter uma textura diferenciada. Lembro-me de quando abri o saco, descobri que a estopa era toda fragmentada, o que já barrou minha idéia - como eu iria usar os fragmentos para tecer? e se a lavagem retirasse os fiapos? achei que não daria certo, e deixei de lado, achando que era melhor comprar um fio felpudo e pronto. Assim o fiz, mas tinha uma brasinha adormecida no fundo do cérebro que me dizia para pensar melhor e trabalhar uma solução, que talvez fosse possível, de alguma maneira. Mas, o imediatismo falou mais alto e abafei a brasa, esquecendo-me do assunto por completo.


2023. Eu, em uma loja de artigos para limpeza, procurando sacos de lixo, deparo-me com sacos de estopa. Imediatamente, a famigerada brasa começa a reacender, e perco bem uns 5 minutos olhando para o material e pensando: levo? peguei um saco, passei no caixa, e fui para casa. Foi o que bastou para que minha mente trouxesse à tona a tal idéia, esquecida, abafada, mas que naquele momento pareceu viável novamente, nem sei o motivo, pois havia muito tempo que não pensava em tecer algo com textura. Para falar a verdade, andava (e ando) tão ocupada com outras atividades que mal tenho tempo para entrar no ateliê, o que dirá pensar em soluções inusitadas. Mas, como sempre, é quando estou tão atribulada, afogada em trabalho, que idéias sobre tecelagem jorram na mente, como um escape miraculoso das pilhas de provas, aulas, atividades.


Novamente, abri o saco, me deparei com aquele material todo fragmentado, e me lembrei que foi exatamente por isso que eu havia abandonado a idéia na primeira vez. Frustrada, olhei e pensei: "mas que coisa...esse era o problema... como resolver?" Minha mente...ah, minha mente...fez-me esquecer por completo da aparência da estopa (eu não a uso para coisa alguma, normalmente), e mais uma vez, me vi em um beco. No entanto, ao tocar o material e observá-lo com mais atenção, vi que havia uma pequena luz no fim do túnel, desde que eu estivesse aberta à possibilidade que surgia, e com paciência para executar a tarefa. Por sorte, eu estava.





Os pedaços de estopa são fiapos de vários tamanhos. Se os esticarmos um pouco, podemos formar "tiras" de emaranhados de fios, que poderão ser enroladas umas nas outras, formando um cordão único. Aqui, entra o fuso.






Um fuso serve justamente para fiar: formar fios a partir de fibras, já desembaraçadas e limpas, que sofrem torção, aumentando sua resistência e construindo cabos para tecer. As fibras vão sendo acrescentadas aos pedaços, alongando o fio cada vez mais. No vídeo a seguir, vemos uma demonstração simplificada de como o processo pode ser feito, apresentado pela artesã Clara Quintela, da Fazenda Caixa Dágua. Clara demonstra o uso de um "drop spindle", este mesmo fuso que tenho e que é o mais comum e mais fácil de usar.




A partir desta idéia, fui acrescentando meus pedaços de estopa e construindo o fio, que obviamente ficou cheio de irregularidades, em parte porque a estopa estava embaraçada, e em parte porque minha inexperiência produziu fios irregulares também em espessura. Mas, vagarosamente, entre erros e acertos, fui produzindo - e porque não dizer - curtindo o processo.




Levei dias "brincando", fiando, fiando...e a experiência trouxe outras idéias: e se eu pudesse "cardar"(pentear, desembaraçar) a estopa?


Cardar faz parte do processo de preparo da fibra para a fiação. Originalmente, isto pode ser feito manualmente com duas escovas de cerdas de metal, que recebem a fibra, e são passadas uma sobre a outra para pentear e desembaraçar o material.





Para tanto, eu precisaria de umas escovas, e como comprar cardas está completamente fora de cogitação (caras!), eu teria que improvisar. Comprei duas escovas de pentear animais, e comecei a pentear a estopa. O resultado foi um fio mais macio ao toque, que reservei em outro novelo.


Quero agora descrever a sensação de fazer fio.

Começamos descrentes, e durante o trabalho, vemos que a torção é como mágica: aquele cabo, que vai se alongando conforme fiamos, é poderoso o suficiente para enfeitar, aquecer, vestir, somente com o manipular das mãos. Quando se pensa nisso, percebe-se que há um quê de divino, de intervenção do Alto, de bênção neste ato. O fio, como elemento essencial às artes têxteis, deve ser respeitado profundamente; aquele que faz o fio, e com ele embeleza e recobre o mundo, deve ser sentir privilegiado. Esta é minha real sensação neste momento, e desejo que todos possam vivenciar isso, pelo menos uma vez na vida.


Isto sim é poder, no real sentido da palavra. E este poder adquirido atribuo ao meu querido fuso, que embora negligenciado por tanto tempo, veio à luz e me ensinou a admirar o início de um bom tecido. Sou grata por esta oportunidade.




O próximo post vai mostrar a continuação desta história, com o produto deste fio. Ainda estou elaborando o que fazer. Nada de muito sofisticado, talvez um trilho de mesa. Seja o que for, será parte do meu legado ao mundo. Sempre digo a meu filho: "quando eu me for, se quiser dizer alguma coisa de sua mãe, diga que ela sabia fazer pano". Acho que será um bom tema de conversa.


Enquanto isso, vou fiando. Ainda há estopa a ser penteada, e mais fio a ser produzido. Há mais encantamento a ser encontrado, mais idéias a serem cultivadas. Enquanto fio, imagino e planejo, relaxo e sonho. E claro, fico esperando uma ótima oportunidade de comprar uma roca (prima robusta do fuso)!

Até lá!




The spinner. William-Adolphe Bouguereaou



Fiando com a roca. Disponível em: http://www.campograndems.net/fazbal/Roca_e_Tear.htm


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